Diácono Lucas Ferreira, ia para o Bairro de Bom Sucesso, celebrar um casamento. Estradinha da casa de pedra, cheia de buracos e de poeira, dirigindo seu fusquinha velho. Curva em cima de curva. Matão danado em volta. Fusquinha ora engasgava, ora tremia, ora dava umas rateadas, mas ia indo. Subida então, era um desarranjo. Carrinho aprontava berreiro danado, soltava fumaça por tudo quanto é buraco, mas ia rodando. Aí chegam os dois, Diácono Lucas e o fusquinha, na descida da Serra da Lumber, no matão mais fechado. Aquele onde todo mundo falava que tinha umas onças... Bichanas nem podiam sentir cheiro de carne humana que tavam em cima da carniça. De tão fechado o mato, parecia até que tinha escurecido. E, para arrematar, povão dizia que assombração ali também era mato. Seu Diácono, não acreditava muito nessas coisas não, mas por via das dúvidas, era bom ficar prevenido. Foi lá que aconteceu a desgraça: pneuzinho careca do fusquinha furou. Rodar com pneu furado prejuízo na certa. Paróquia pobre. Diácono pobre. Sair do carro risco grande demais. Coragem pouca. Diácono Lucas, craneia, craneia e não acha solução. Nenhum vivente à vista. Ninguém para uma demãozinha. Viu que tava mesmo cagado de arara. Casamento lá no Bom Sucesso, tinha hora marcada. Noivinha já devia estar chegando à igrejinha na charrete toda enfeitada. Agoniada esperando a grande hora. Com um friozinho na barriga coitado do Lucas, resolve sair do carro e trocar o pneu. Rezando o Creindeuspadre. Atento a qualquer barulho. Suando frio. Olhando de rabeira pra tudo quanto é sombra. Pronto para refugar frente a qualquer sinal suspeito. Trabalhão danado pra tirar pneu furado. Mãos acostumadas escrever (além de diácono Lucas era professor) a rezar, celebrar casamentos sem traquejo com chaves, macaco e parafusos. E a tralha velha não colaborava: macaco sem óleo, chave da boca maior que as cabeças dos parafusos... Tirou o bicho mais no muque, com uns palavrões seguidos de Padrenossos, do que com a ajuda do macaco e da chave de rodas. Pegou a calota, virou-a de boca pra cima e nela colocou cuidadosamente os quatro parafusos pra não perder nenhum e nem pegarem poeira. Como o carrinho estava meio mole, freio de mão avariado, resolve procurar uma pedra para calçar o danado. Bem no barranco, assim perto duma moitinha, vê uma pedrona boa. Borrando de medo, mas com muita fé em Deus, sai de perto do carro e vai pegá-la. Um pé na frente e o outro atrás, pronto para a refugada. Quando tá com a bruta nas mãos, fazendo força, ouve um barulhão dentro da moita. Sente aquela friagem na espinha, pernas amolecem, coração acelera e os poucos cabelos arrepiam. Mas instinto de sobrevivência fala mais alto e o pobre do Diácono Lucas, sai numa desabalada corrida carregando a pedra. Reto no rumo do fusquinha. Chega perto do carro, solta a dita cuja de qualquer jeito e tafuia dentro dele esperando pelo pio. Fica no quieto tempão danado, a ponto de rezar quase todo o rosário, e... nada. Bicho nenhum aparece. Nem assombração. Negócio era criar coragem novamente e voltar ao que tinha começado. Melhor pensar que o barulho era de algum lagarto ou de um gato do mato assustado. Assim que o diácono sai do carro é que vê a burrada que fez. A pedra caíra na borda da calota e, com a queda, jogou os parafusos pra longe, no meio do mato. Achá-los, impossível. Procurar, nunca. Desespero toma conta do coitado. Xinga umas palavras em italiano, mas rapidinho se arrepende e pede perdão a Deus. Já sujo, molhado de suor, rezando baixinho, com fome, senta lá dentro do carro esperando solução. Noite chegando. Medo agoniado e inconfesso espremendo o peito. Depois de muito rezar, vê um vulto aparecer lá no alto do morro. Põe óculos, tira óculos... E o vulto descendo. Devagarinho. Pára, anda, pára de novo. E o Diácono Lucas, tremendo e butucando de olho arregalado: - Ai Deus meu, agora é sombração mesmo!... O que que eu fiz de errado, meu Deus? Virgem!.. O santo homem sente vergonha de si mesmo, do medo que estava sentindo e se lembra até dos sermões que fazia nas aujas de casticismo contra essas crendices pagãs. Na prática teoria era outra. Novamente põe óculos, tira óculos e o vulto vindo. Sem pressa, naquele mato escurecente. Quando o vulto chegou bem perto foi que o Diãcono Lucas, entendeu que era gente. Gente de verdade. E não é que ele conhecia o dito? Era o Zé Beleza. O doido lá de Itararé. Aí Diácono Lucas, se encheu de coragem e saiu do carro. Foi com santo alívio que cumprimentou o recém-chegado: - Boa tarde, Zé! O que que anda fazendo por estas bandas, meu filho? - Tarde! - Tá passeando, Zé? - Pensano!... - Pensando em que, Zé? - Cê leva ieu? O diácono pensou consigo mesmo: "que adianta eu querer conversar com este maluco? O Zé Beleza, não diz coisa com coisa mesmo!". Mas, como não queria perder a companhia, mesmo sendo de um lelé da cuca, continuou o papo como se fosse tudo dentro da maior normalidade. - Pra onde você vai? - Vou até o Bairro, buscar o "Zé Graça", pra conserta , o caminhão do Chico Candoga que pifo!! Na Fazenda Saco Grande. Leva. Eu levo. Acontece é que o pneu tá furado... - Por que ocê num troca? - Era o que eu ia fazer, Zé, mas perdi todos os parafusos desta roda e não tenho outros para colocar no lugar... Zé Beleza, parece que esquece do que estavam falando. Fica olhando pro mundo. Resolve dar uma volta em torno do carro como se o examinasse com olhos de comprador. Olha daqui, olha dali... Desenha uma careta no vidro empoeirado... Dá uma risada... Abre porta, fecha porta... Pára. Olha pra moita na beira do barranco onde vê um pé de murcha-mulata carregadinho de flor. Vai lá, pega um galhinho e vem cheirando. O diácono só de butuca. Quando ia perguntar se podia contar com aquela companhia maluca noite a fora, naquele ermo, Zé Beleza, dá uma aspirada na murcha-mulata e olhando para um ponto fixo no espaço, diz: - Por que ocê num tira um parafuso de cada roda e põe nessa. Foi tudo muito rapidinho. Diácono Lucas e o Zé, chegaram à Bom Sucesso, quando a noiva, triste e chorosa, estava dentro da charrete pronta pra ir pra casa e o povão já indignado com o que seria uma grande desfeita do diácono. Ninguém entendeu foi porque o Diácono Lucas, estava andando na companhia daquele maluco. Também ninguém perguntou. Povo de Bom Sucesso, é assim: não é especula, só sabe o que é pra ser sabido...
O saber a gente aprende com os mestres e os livros. A sabedoria, se aprende é com a vida e com os humildes.
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sábado, 10 de outubro de 2015
SABEDORIA DO ZÉ BELEZA...
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